terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Viagens.

Minha mãe sempre disse que eu tinha dois lados do coração: embarque e desembarque. Era uma maneira divertida de descrever meu gosto por viagens.

Acho que isso vem desde que eu estava dentro da barriga dela, quando, aos nove meses de gravidez, ela falsificou um atestado médico dizendo estar apenas na metade da gestação para poder embarcar em um avião e voar para outros mares.

Depois, ainda pequena, ganhei inúmeros carimbos no passaporte, mostrando os caminhos inusitados por onde estive.

Sempre, os dias que precediam uma viagem eram alegres, em casa. Meus pais alugavam filmes, compravam livros sobre o lugar que visitaríamos. Era uma viagem interna que acontecia dentro de cada um de nós, antes da viagem física.

E foi assim que conheci um mundo de 7 bilhões de realidades, cores indefinidas, verdades relativas e momentos de pura excitação.

Minha realidade cruzava fronteiras entre a neve argentina, o delicioso mundo do Walt Disney, a fome na Índia, o exército chinês, as cores da Tailândia, o comunismo tropical de Cuba, o calor do oriente médio.

E fui construindo meu mundo assim. Pegando um traço de cada canto que conheci. Um ensinamento de cada pessoa que passou tão rapidamente na minha vida durante essas andanças.

Foi também numa viagem, aos 6 anos de idade, que tudo o que eu quis comprar na imensa loja de brinquedos foi um bastão transparente com água e purpurina dentro.

Eu não queria a casinha com formato pronto ou os jogos de tabuleiro que determinavam o próximo passo a ser seguido.

O meu bastão era apenas um traço que dava início a desenhos fascinantes dentro da minha cabeça. Ele era o tronco de uma árvore de folhas azuis. Uma varinha de condão, um microfone. A parede de um prédio, um poste, onde meu elefante de estimação parava para fazer xixi. Era o teto do meu mundo sem-limites.

Tem pais que ensinam a filha a ser uma ótima dona de casa, excelente esposa e profissional. Eu não sei cozinhar, falo palavrão, sonho demais e economizo de menos. Eu fui criada pra explorar o mundo dentro e fora de mim. Fui ensinada a viajar e usar isso como combustível para viver e sentir o mundo e seus cheiros, o mundo e seus sabores, o mundo e suas paisagens, o mundo e seus contrastes, o mundo e sua natureza harmônica e contraversiva.

O resultado disso é que até hoje vivo um dia de cada vez, não faço planos e ajo inconseqüentemente como se amanhã mesmo fosse entrar em um avião e recomeçar de novo, longe de tudo e todos. Não sou muito de dar satisfação, tenho dificuldade de me apegar às pessoas e me desapego de lugares, manias e objetos com facilidade. Tudo tem um certo "quê" de efêmero.

Em compensação, tenho uma coragem absurda e uma curiosidade profunda a respeito da minha vida de dentro e do mundo lá fora. E me pergunto: quantos pais ensinam isso a seus filhos? Tive sorte. Hoje, com quase 27 anos de idade, já rodei os cinco continentes e acabo de chegar de mais uma cruzada. Tinha esquecido como é revigorante viajar.

E devo isso aos meus pais. Não por eles terem me pagado a última passagem, mas por eles terem me ensinado a viajar, em todos os sentidos. Por terem me ensinado a “não dormir em dólares”, a levar pouca roupa na mala, conversar com o maior número de pessoas possíveis, a entrar na realidade do lugar visitado, a falar quarto línguas, andar em um aeroporto, não ter medo de nada e que, muitas vezes, durante a viajem, a única companhia que você terá é a sua. E de sua imaginação. Onde você for, minha filha, o seu mundo vai com você. Então, cuide para que ele seja rico e acolhedor. Deixe-se contagiar pelo mundo lá fora. E contagie o mundo lá fora com o seu.

Meus pais me ensinaram a viver dentro e fora de mim, a ser amiga e ouvinte dos neurônios, fígado, coração e entranhas. As minhas e as dos outros.

E entre as duas coragens: a de não temer voar pelo mundo e a de quem aguenta o universo dentro de si, acabei ficando com as duas e aprendi que elas se complementam. Uma não vive sem a outra.

Não é fácil ter essa delicadeza de sentir. Já vi tanta gente atravessar oceanos e fronteiras sem absorver nada. De que adianta voltar o mesmo? De que adianta voar horas para encontrar a mesma realidade?

Eu gosto mesmo de conhecer outras vidas. De conhecer outras culturas e perceber a vastidão do mundo, para que meus problemas e minha existência se tornem tão minúsculos a ponto de sumirem entre as areias do deserto, as ruas povoadas da Ásia ou diante dos imponentes monumentos das civilizações antigas.

É preciso ter as ferramentas certas pra olhar pras coisas o tempo todo como se elas fossem encantadas e não simplesmente coisas.

Durante muito tempo eu fiquei acomodada na minha realidade, sem sair do país, sem sair da minha alma. Mas, voltei a brincar com o bastão transparente que da formas à minha imaginação e redescobri o mundo das viagens.

Voltei a atravessar as águas profundas, geladas e escuras, do mundo dentro de mim. Do rio Amarelo e do Mar Vermelho também. Dentro da barraca dos beduínos, do camping na praia e da minha barraca que não é barraca, é lençol preso no teto com fita crepe.

Minhas histórias me deram a capacidade de sonhar e, minha personalidade, uma inquietude que não passa nunca. O resto do mundo agora é comigo.

5 comentários:

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  2. Ops, eu acho que eu vi a Lelis! Ontem eu vi uma imagem embaçada dela. Falei com ela no dia de seu retorno e adorei o quê e como eu ouvi. Assustei logo depois com o que vi ontem, mas hoje tenho certeza, eu vi a Lêlê.
    Cheguei a pensar que a cicatriz do dedo da mão estivesse doendo, mas foi só um susto.
    Feliz 2010! Como vc quizer que ele seja, que ele será! FELIZ 2010!

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  3. Dando Nome Aos Bois foi retirado? É o começo de 2010, finalmente?

    Será que vc está pronta para novos relacionamentos ou sua personalidade ainda destrutiva vai aparecer?

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  4. É isso aí............
    Ano novo, vida nova e a "velha" Lelê de volta, pensando nela, cuidando dela, fazendo as coisas para ela.
    Demorou 5 anos, mas vc. aprendeu que ninguém te merece mais que você mesma!!
    Viaje, curta, aproveite e ame.............., ame muito, pois vc. merece!!

    Beijos, Mima

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  5. Mamãe disse...
    Este texto é um marco.
    O passado ruído e enterrado, o FUTURO NASCENDO.
    Agora é só assistir de “camarote”.
    Qual mãe não teria “babado” por este texto?
    Acho que todas, porem poucas puderam ter o prazer de ler algo tão gratificante.
    Valeu por cada minuto mal dormido e por cada momento de incerteza.
    Obrigada pela clareza de idéias que você adquiriu.
    Missão cumprida.
    Te amo,
    mamãe

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