sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Rehab

Meus olhos se abriram. E pareciam ser a única parte do corpo capaz de se mover. Inútil tentar levantar-se.

Poderia esforçar-me, fincar o pé direito no chão e me convencer de que hoje superaria tudo. Mas não.

Hoje não saio daqui. Vou deixar o choro me invadir por todo o dia. Vou permitir que a sua lembrança me estapeie, devaste todo meu interior, transformando ossos em pó, coração em cinzas, sangue em concreto.

Vamos lá, dor, você tem 24 horas para causar todos os danos que lhe é direito. Vá com tudo. Penetre como uma lâmina em minhas veias. Percorra todo meu corpo até alcançar o inconsciente. Tome para si qualquer resquício de energia que encontrar. Engula as forças que cruzarem seu caminho e a impedirem de demolir-me. Deixe-me em pânico, contorcendo-me.

Ao final dessas 24 horas, recolha os seus e suma. Vá para bem longe e nem pense em voltar tão cedo. Se tentar aproximar-se novamente, será barrada como uma gata na portaria.

Mas, por favor, antes de sair, deixe tudo como encontrou. Coloque tudo no lugar, direitinho. E, como recompensa por tê-la deixado se esbaldar, reforce as estruturas: aperte as dobradiças, passe mais uma camada de tinta e erga imponentes pilares de sustentação, só para garantir que a destruição não virá em nuances tão fortes da próxima vez.

Olhei para o relógio, gravei as horas e minutos e disse baixinho: um, dois, três, valendo. Coloquei-me em posição fetal, apertei as pálpebras e franzi a testa.

Assim fiquei até o dia seguinte, atravessando uma funda noite, cujo louco vento me trouxe fiapos de gritos.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Atente você, desconhecido.

Pode invadir ou chegar com delicadeza, mas não tão devagar que me faça dormir.
Não se mostre indiferente, tenho o péssimo hábito de revidar.
Toque muito em mim, principalmente nas mãos e minta sobre minha estonteante beleza.
Tenho vida própria, faça-me sentir saudades, conte algumas coisas que me façam rir e admirá-lo.
Viaje antes de me conhecer, sofra antes de mim para reconhecer-me um porto.
Acredite nas verdades que digo e também nas mentiras. Elas serão raras e sempre por uma boa causa.
Respeite meu choro, deixe-me sozinha, só volte quando eu chamar e, não me obedeça sempre, pois eu também gosto de ser contrariada.
Seja mais forte que eu e menos egoísta.
Não se vista tão bem. Gosto de camisa para fora da calça, gosto de braços, gosto de pernas e muito de pescoço.
Reverenciarei tudo em você que estiver ao meu gosto: boca, cabelos, os pelos do peito e o joelho esfolado. Você tem que se esfolar as vezes, mesmo na sua idade. Assim, terá uma boa desculpa para que eu cuide de você. Leia, escolha seus próprios livros, releia-os.
Odeie a vida doméstica e os agitos noturnos. Seja um pouco caseiro e um pouco da vida.
Não seja escravo da televisão, nem xiita contra. Nem escravo meu, nem filho meu, nem meu pai. Escolha um papel para você que ainda não tenha sido preenchido e o invente muitas vezes.
Enlouqueça-me uma vez por semana. Goste de música e de sexo. Goste de um esporte não muito banal.
Não invente de querer muitos filhos, carregar-me para jantares pacatos, apresentar sua família. Isso a gente vê depois, se calhar.
Quero ver você nervoso, inquieto.
Olhe para outras mulheres e ache que eu sou melhor que elas, por qualquer razão.
Tenha amigos e digam muitas bobagens juntos. Não me conte seus segredos.
Faça-me massagem nos ombros.
Não fume, beba, chore, eleja algumas contravenções.
Rapte-me e, por fim, se nada disso funcionar, experimente me amar.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Saudades

Estava arrasada, completamente devastada. O que seria da sua vida sem ele? Fazia menos de uma hora que descobrira a traição. Mas parecia que já durava um mês.

Ficou ali, olhando para o teto, derretendo-se em lágrimas. Lembrava e relembrava fatos, frases, cenas, sempre tentando desesperadamente se apegar ao que agora não existia mais. Sentia o estômago retorcer, a garganta fechar e o coração apertar.

O telefone tocou. Suspeitou que fosse ele. Temendo gritar, fechou bem os olhos para conter a dor dentro do corpo. Era uma amiga que, sabendo da notícia ofereceu palavras em consolo.

Conversaram por horas. Em um esforço sobre humano, a amiga até conseguiu arrancar uma risada da enlutada. Por fim, desligou e pensou há quanto tempo não papeava ao telefone com uma pessoa querida. Como era bom aquilo. Por que deixara de lado?

Passados alguns dias, recebeu o convite para sair com alguém que não conhecia. Percebeu a espinha gelar. Resolveu aceitar. Abriu o armário para escolher o que vestir. Viu as camisas, bermudas e tênis que ele mantinha ali. Lembrou de como tinham chegado àquela intimidade. Desde o primeiro encontro até o dia que teve de separar uma repartição do guarda-roupa para as coisas dele. Aproximou-se das peças do ex. O coração palpitou, mas, forçadamente, sentiu o perfume de outra mulher e guardou as camisas numa caixa.

Durante o encontro, conversaram sobre suas viagens e andanças pelo mundo. Foi bom ouvir, na própria voz, todas aquelas peripécias. Quanta coisa já tinha feito! Quantas histórias tinha para contar. No entanto, entristeceu-se ao perceber que nada daquilo fora feito nos últimos cinco anos. Por que ficou tanto tempo no mesmo lugar? Justo ela que era conhecida por ter “rodinhas nos pés” e gostar de perambular!

Depois, foi sua reestréia na tal balada. As pernas ainda seguravam quase cinco horas dançando. A bebida espantava a timidez e a fazia sentir-se plena, viva, sem ter deixado amarelar a lira dos seus 20 e poucos anos.

Naquela mesma madrugada, chegou em casa e ligou a TV, que estava programada para sintonizar no canal de esportes que ele gostava. Trocou para um filme francês que ela adorava e se perguntou por que fazia tanto tempo que não revia aquele clássico do cinema. Sorriu novamente quando percebeu que sentia muito mais saudade dela mesma do que dele. “Quase me anulei deixando tantas coisas que gostava para trás." E isso foi tudo que conseguiu racionalizar e tirar de lição sobre o fim do namoro. Fez um sanduíche de peito de peru com requeijão, hábito que abandonara por insistência dele de não misturar carne com leite. Devorou-o e dormiu antes mesmo de o filme terminar. Sozinha e, por isso, sem escovar os dentes.